Fé na vida
Ser uma junção de muitos seres até deixarmos de nos procurar, porque tudo o que nos compõem passa a ser mais fascinante do que um simples "eu" não encontrável.
Minhas aulas de inglês tem sido uma fonte de abertura e reflexão sobre temas da vida. Sinto-me sendo alargada no tempo e espaço, e na desconstrução de temas que pareciam tão compreendidos e óbvios para mim.
Estes dias estávamos falando sobre crenças e um dos temas que levantaram foi a fé. Uns diziam sobre um Deus e amor incondicional, outros sobre suas experiências de milagre, gratidão e sacrificios de acordo com as suas religiões. Alguns atos mais comuns a minha cultura, outros completamente novos para mim.
Mas o que mais me marcou foi a fala da Iriana. Iriana chegou ao Canadá no mês de julho fugindo da guerra na Ucrânia. Voz doce, trêmula embargada pela água que se move em seus olhos e inunda sua garganta, e ao mesmo tempo extremanente firme. Ainda não abriu a câmera e toda a vez que eu a ouço, eu a imagino como uma árvore com seu tronco retorcido, forte e com movimento como se estivesse dançando. Raízes bem profundas e muito orvalho hidratando seus galhos e folhagens. Folhas verdes e outras da cor do outono. Seu contato com a terra coberto por folhas. E bem no topo de sua copa, o sol a ilumina.
Ela nos contou que ela respeita cada crença de acreditar em um Ser Superior, mas ela aprendeu a ter fé nas pessoas e na vida.
“Sempre escutei que a gente precisa ter fé, conversar com um Ser Superior e depositar os nossos pedidos. Eu acho que a gente precisa mais do que isso. Precisamos falar com os seres humanos. Precisamos fazer nossos pedidos aos que estão ao nosso lado e dizem que nos representam. Se as pessoas se sentem no poder de decidir iniciar uma guerra, não podemos ficar cada um no seu espaço fazendo pedidos em silêncio. Temos que falar em voz alta. Juntar os nossos pedidos. Meu povo não está morrendo de forma natural e, sim por violência e determinação humana. Em momentos de guerra todos nós morremos juntos, mesmo que uns digam: ‘você se salvou’.”
Fiquei tentando me imaginar na situação dela. Uma parte de nós desmorona e não tem para onde voltar. Nada mais está lá. Os lugares, os cheiros, as cores, nada mais está no mesmo lugar. As pessoas não estão mais lá, e se estão, já não são mais as mesmas. Talvez vivam a partir do medo que sentem. E as que saíram, talvez vivam a partir das perdas trágicas que sofreram.
Ela continuou: “Mas ao mesmo tempo eu conheci o amor mais puro que podia existir. No dia 28 de fevereiro (deste ano), eu saí de casa desesperada com o meu marido e meu cachorro. Seguimos com o carro e dirigimos até o combustivel acabar. Depois andamos mais de 28km, a última vez que eu vi no relogio a marcação. Estava frio, 7 graus negativos. Sentamos num vilarejo e as pessoas que estavam ali em frente às suas casas, nos acolheram mesmo com medo e sem saber como seria o dia seguinte. Uma familia me abraçou, ofereceu uma sopa quente, água, deixou-me tomar banho, deu-me cobertor e lugar para dormir. Várias famílias fizeram isso com outros que haviam largado suas casas pra trás. No momento de mais desespero na minha vida, eu recebi amor. Eles não sabiam quem eu era, mas queriam saber como poderiam me ajudar. Eu saí da Ucrânica com o objetivo de não silenciar. Com objetivo de subir em qual mesa for possível e falar em voz alta por mim e por todos que estão lá. Eu conheci o ódio de quem permite a guerra, mas também conheci o amor incondicional de quem olha, se reconhece e oferece o que tem, mesmo sabendo que amanhã pode fazer falta. A guerra me deixou marcas para sempre. Sinto raiva enlouquecedora, tristeza profunda, e também muito amor. No dia seguinte, sair daquele lugar seguro e acolhedor, foi dificil demais. Por mais inseguro por conta da guerra, lá eu encontrei esperança na vida e nas pessoas. Estava tão nervosa que eu não me lembro bem dos nomes e das fisionomias, mas me lembro do toque, da atenção, do sabor da sopa quente, da temperatura, da textura das roupas emprestadas. Estou aqui (no Canadá), tentando viver, e todos os dias eu acordo e penso nestas pessoas que seguiram por lá. Perdi casa, meus objetos preferidos, meus lugares de ir; mas não perdi a dignidade de subir na mesa e falar: ‘é preciso saber que não dá mais para ter guerra em pleno 2022. Pessoas morrem, mesmo aquelas que não morrem fisicamente’.”
Minha garganta doía querendo gritar junto. Não há espaço para a guerra. Quando há guerra, parte de nós morre junto com aqueles que perdem suas vidas e estão vivendo pesadelos acordados. Notei que a minha professora havia tirado os óculos, seu rosto estava vermelho e ela secava as suas lágrimas quase sem conseguir. Ficou um silêncio profundo para acomodar aquele mar de sentimentos revoltos. A professora tomou um copo d’agua e disse: “me desculpa você reviver tudo isso que lhe dói e muito obrigada por dividir conosco este exemplo tão real e profundo. Eu sinto muito e acho que compreendo o seu sentimento. Eu vim para o Canadá há muitos anos fugindo da guerra da Iugoslávia. Passei por situações parecidas. Parte de mim morreu lá e parte de mim renasceu aqui. Aprendi que o melhor remédio é seguir oferecendo o melhor que a gente pode. Acolhendo como a gente pode. Tentando expressar o melhor de nós. O grande problema é que facilmente a gente normaliza a guerra. No começo é um choque e depois parece que as pessoas aprendem a conviver e achar que isso faz parte da vida. É preciso gritar junto com aqueles que precisam de nossas vozes.”
Tem sido aqui, nesta terra famosa por árvores de bordo ou Maple Tree, que venho conhecendo histórias como estas e me perdido de mim mesma, me desconstruindo e compreendendo que existem muitas realidades que meus olhos jamais conseguiriam alcançar, se não houvesse a confiança destas pessoas partilharem generosamente seus mundos. Descobri aqui, que a vida é plural e existem: realidades, mundos, presentes, passados, futuros.
É possivel nos transformarmos a cada encontro. Descobrir como nossos corpos e mentes reagem às histórias, nos ajuda a dissolver uns nos outros até um momento de não saber onde começa o que sei e onde termina o que eu sinto. Passamos a ser plural, coletivo, uma junção de muitos que passam a caber em nosso coração de forma tão fluida que deixo de me procurar, porque tudo o que me compõe passa a ser mais fascinante do que uma definição de um “eu” não encontrável.
Meu convite é que possamos olhar ao nosso redor e identificar onde podemos gritar enquanto coletivo. Nos questionar quais sofrimentos e violação de direitos naturalizamos. Que possamos nos perder nas histórias de outros seres como um dos caminhos de nos encontrarmos na pluralidade. Permitirmo-nos sentir as histórias em nossos corpos e nos movermos para perto delas, compreendendo que olhar para dentro é também olhar para fora. E por fim, nos permitirmos sermos transformados pelas relações.
Movimentos que tem me alegrado
O PodCast Trocas Preciosas que atuo com a Adriana Oliveira liberou esta semana, dia 12 de dezembro, o ultimo episódio deste ano. Nossa convidada foi a Solange de Luz, mais conhecida como Sol. Seu apelido expressa bem a grandiosidade de ser humano que ela é. Ela nasceu no Jardim Peri, Zona Norte de SP e tem desenvolvido um trabalho maravilhoso na comunidade através do Movimento Conexão Favela.
Deixo aqui um trecho que me marcou muito:
“Tem uma coisa que é inerente a todo o ser humano. Não existe ser humano que esteja neste planeta que não passe por isso, que se chama: dor. Dor! E pode ser qualquer dor. Pode ser a dor da perda de alguém. Pode ser a dor da luta contra uma doença. Pode ser a dor da luta contra a desigualdade. Da luta contra o vício… A dor tem a capacidade de transformar. A nossa dor individual, se bem ressignificada, tem a capacidade de impactar o mundo."
Além deste episódio tem outros incríveis sobre: Futuros, Histórias Infantis, Mindfulness, Empreendedorismo Feminino e Transição de Carreiras, Consciência Alimentar, Anos de Vida, Linguagem Oral na Infância e Puerpério.
Próximo ano tem mais entrevistas maravilhosas sobre Consciência e conexão com o corpo, estética natural, Cuidados Paliativos, Infância, entre outros temas que atravessam nossas vidas.
Ficou curiosa(o)?! Clique aqui neste link para ter acesso ao Episódio “Periferias - o que sabemos e o que não sabemos”.
Eu fico por aqui e caso queira trocar experiências ou me dizer o que sentiu ao ler, ficarei feliz em receber seu contato pelo email pflavia.almeida@gmail.com.
E se achar que esta leitura pode ser interessante para algum amigo ou familiar, fique a vontade em compartilhar.
Um abraço com carinho e até mais,
Pri